Dez anos depois, A Cartilha está de volta.

18/04/2008

Sem Vergonha

Trinta e três anos depois do 25 de Abril, ainda se tratam como heróis, os miseráveis e cruéis traidores do povo português. Com um cravo nas mãos manchadas de sangue, envergonham a história, a bravura, o labor, e a grandeza dos seus antepassados.
Em baixo, excertos de uma grande reportagem (consultar na integra) da agora jornaleira do PS Fernanda Câncio (G.R. 1994). Frontalmente contra a pena capital, com estes abriria uma excepção.

«Penina, 15 de Janeiro de 1975. Estão cá todos: Rosa Coutinho, o almirante vermelho e alto-comissário de Angola, com o seu perfil de Yul Brynner sardónico, Costa Gomes, o general presidente, convenientemente coadjuvado por Melo Antunes, ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, o internacionalíssimo ministro das Relações Exteriores, Almeida Santos, ministro da Coordenação Inter-territorial, e mais uns quantos, especialistas provisórios do enésimo governo pós revolução. E os protagonistas, claro. Agostinho Neto, médico poeta de sorriso esfingíco, o expansivo Jonas Savimbi com a sua inseparável bengala e Holden Roberto, o reservado homem da FNLA. Problema nenhum: as quezílias estão esquecidas, os três movimentos que nunca se puderam ver nem pintados trocam abraços e apertos de mão. Pouco importa que se tenham guerreado uns aos outros com mais entusiamo ainda do que terçavam armas com o exército colonial. Tudo águas passadas.
Aquilo que ficou para a História como Acordo de Alvor decreta um governo provisório de coligação tripartida com inclusão portuguesa, a manter a soberania até ao dia D, 11 de Novembro.

É no interior, no mato, que a situação se agrava mais rapidamente: longe da presença dos tropas e das direcções partidárias, as represálias e as explosões de odio racial sucedem-se. No norte, onde a tradição da violência remonta aos massacres de Fevereiro de 61, causa directa da guerra, formam-se caravanas para Luanda, para os portos. (...) “Conto-lhe o que vi, com os meus olhos. Crianças abusadas, gente espancada, lojas queimadas. Mulheres violadas à frente dos maridos e depois mortas. Acredita se quiser. O que se está agora a passar na Jugoslávia é só uma amostra do que se passou lá.” Vitor B. tem 67 anos, nasceu em Angola e gostaria de nunca de lá ter saído. Gonçalves Ribeiro, mais tarde alto-comissário para os refugiados e hoje general, afirma o seu pudor em abordar a matéria em causa, que define como “a experiência da sua vida”. Mal ou bem, é ele o nome que todos apontam como coordenador do air-lift que em três meses e meio transportou quase meio milhão de pessoas de Nova Lisboa e Luanda para o aeroporto da Portela. “Usávamos o rádio para chegar aos sítios mais isolados, à mata, para tentar saber onde é que havia gente a precisar de tranporte. Mandávamos lá a Força Aérea para as trazer aos dois grandes aeroportos. Chegavam de todo o lado, exaustos, traumatizados, sem nada. (...) [A situação militar] com a UNITA não tinhamos qualquer confronto e a Leste e a Norte, as forças que se nos opunham estavam, respectivamente, na Zâmbia e no Zaire. Mas assim, desta forma, tudo tinha de correr mal."

Olhos azuis, bon-vivant. O brigadeiro Aguiar e Silva é um militar à séria, de voz grossa e brusquidão marca registada. Fez a ponte aérea, foi um dos últimos pilotos a abandonar Luanda. (...) Então o último dia, como foi? “Como foi? Acordei, arriámos a bandeira, e começaram a aparecer uns indivíduos rotos, descalços, com Kalashnikovs na mão. Quando descolei entraram. Como um bando de aves de rapina.” E? O gesto brusco traz o olhar sem entrega. “Chorei. Não é vergonha nenhuma, pois não?”»

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